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sábado, 30 de janeiro de 2016

O que carrega uma leitura

Hoje, hoje mesmo, vinha em carreira de autocarro a ler a prosa de Fernando Pessoa, livro que garimpei em sebo - livraria popular. Lá estava escrito uma frase simplesmente profunda: escrever em poesia faria de Fernando Pessoa génio, porém a prosa complementaria e o tornaria, finalmente, imortal. A um escritor verdadeiro parece-me claro ter de haver o empenho nos estilos, mesmo que feitos de maneira avulsa, para que diversifique a obra. A arte, ao meu ver, dionisíaca, isto é, sem apoio neste mundo retilíneo de Apolo deve ser também como esta frase: polémica e multifacetada. 

Ao olhar para a janela do autocarro vi-me surpreendido por um aglomerado de pessoas a brincar antecipadamente carnaval. Mulheres, crianças, homens, idosos, uma música a tocar altíssimo sem parar e eu a pensar: mas o que deve tirar da rua um escritor? Desta rua o que sairia? Talvez algo do tipo: "E as pessoas brincavam de esquecer-se de seus transtornos e o que os cerca e levantam os braços ávidos por dança, por circo, por diversão. Afinal o hedonismo é eufemismo para o ser humano, ser luxurioso por natureza.  A festa da carne expõe todas as carnes umas as outras com tamanho fervor que nada a para. A música é algo hipnótico que ludibria os sentidos até fervilharem...". Em poesia algo como:

E eles dançam como febris corpos
A levantar de si a carne aquecida 
Para uma a outra lançada a perdida 
Festejar o festim em molhos
Como se houvesse olhos outros
Para ver tamanha vinha bebida 

Sim, amigas e amigos, entendi por bem o que disse o texto acerca do Fernando Pessoa. Um escritor não pode ver algo por um só ángulo. A vida é perspetiva. A vida é uma sinestesia, daí ter que se vivida de pleno e por isto escrito também de pleno. Não notei o vómito em cadeira à frente. Já as vísceras a partir de dentro e ejetar comida e sentimentos de prazer afora do corpo. Deve ter sido bem digerida, por suposto, mas eu festejo o facto que uma coisa é certa: escrever não é copiar a realidade, todavia criar outra. Eu jamais posso dizer menos do que vejo, sempre o aumento. E isto faz de um vómito algo sensível a um poema, de um festejo carnavalesco uma prosa inspirada. E assim por diante. São lições que um autocarro ensina-nos, quanto mais ao fazer trajecto maior do que costume por ruas estarem fechadas à folia de Momo. 



Eustáquio Silva (30/01/2016).

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O homem fescenino

Ele anda às turras com a realidade. Antes considerado sedutor e pensante na arte de seduzir, agora reduz-se a um pândego sempre ébrio a gracejar para algumas raparigas que não lhe dão ouvidos nem sentam a seu lado.
Homem em extinção. Pede o vinho mais acre e o toma num gole. Sente-se forte para sua fraqueza e sua vontade de manter seus ímpetos sexuais em dia. Mas sempre regressa sozinho ao seu quarto perto a Avenida Liberdade, numa das ruelas que acercam, no qual tantas mulheres já acordaram com aquele sorriso belo na boca de estarem satisfeitas. Hoje acorda ele com gosto amaro a tomar uma chávena de chá forte e desanimador. 

Não é produzido e nem recicla-se. Tornou-se um artigo de museu. Sua vestimenta é ridícula. Suas palavras lembram o português barroco, árcade talvez, ele parece ter sido perdido num verso erótico de Manuel de Bocage. E como sofre com tal recompensa da vida, A vida que tira, a vida que retira. E mais um dia volta à solidão soturna de seu quarto com a Vênus de Milo pintada à parede, em destaque, canva escura, nem dá para vê-la bem ao certo. Perdeu espaço para o homem completo: forte dentro e fora de casa. Nada sabe fazer que o Diário de Kierkegaard não o tenha ensinado. Não conquista nem mais a mesma mulher. 

Pergunta a um ébrio que deita-se sobre à mesa.

- Por acaso perdi eu o tino para as mulheres. 

O homem bêbado olhou-o com um ar cínico, arejou o seu olhar, levantou-se e pôs, tal Diógenes, à frente do inquiridor e disse: tente a si mesmo. Seduza-se e leve consigo tuas lamúrias idiota! 

Lá se foi a última pá de honra de um homem. Em trechantes foi perdido. Em um molha de recordações foi deixado. Enterrado vivo. Fama sua foi-se como vento: acabou-se o homem fescenino. Um dia a responsabilidade abre os braços e cativa os seus. Ele fica de fora. Chateado com pingos de pranto aos olhos, mas resignado. Perdeu. A derrota chegou-lhe, não com a idade, mas com a irresponsabilidade plena. 

Foi-se de novo à casa. À porta uma última olhada em sua boemia e seu grito de descaso: vou dormir! 



Eustáquio Silva (29/01/2016).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Queimor

Eu quero que minha pele queime
Toda a minha inconstáncia
E com grande e selvagem ganáncia
Em algum momento deite

Sinta em cada poro o deleite
De ser pela dor acometido
E no prazer redimido
Seja este todo seu enfeite

Ó, nobres desejos humanos
Ó nobres, ó nobres, ó fidalgos
São lamas também, são algo
De repugnante que inflamamos

E no fogo queimam pele rica
Com ouro e coisas adornadas
A luxúria é aquilo que indica
São todas almas desgraçadas

Quanto mais as peles vão a queimar
Eu mesmo as digo e repito
Porque não acham bonito
O epectáculo de se evaporar

Até os mais interesseiros dos homens
Sabem que o dantesco ali vive
Porém não descem ao trágico que vive
Nestes tão memoráveis nomes

Tragédia que não é tristeza
E é toda fatalidade
É a dos poetas, verdade
A sua real fortaleza

Q'ria que estes malévolos gritos
Fossem só de meus ossos
Mas outros que agora olho
Também soltam tais gemidos

O risco é viver em ingratidão
Em promessa descumprida
Afinal isto é a vida
E foi isto que os trouxe à escuridão



Placidus Acarius (28/01/2016).

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Baudelaire

Embriagai-vos

É necessário estar sempre bêbado.
Tudo reduz a isso, eis o único problema.
Para não sentirdes o fardo horrível do tempo,
que vos abate e vos faz pender para a terra,
é preciso que vos embriagueis sem tréguas.
Mas de quê?
De vinho, de poesia ou de virtude,
como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.
E, se algumas vezes, sobre os degraus de um palácio,
sobre a verde relva de um fosso,
ou na desolada solidão do vosso quarto,
despertardes com a embriaguez já atenuada ou desaparecida,
perguntai ao vento, à vaga, e a estrela e o pássaro

e o relógio hão de vos responder:
– É hora de embriagai-vos!
Para não serdes os martirizados escravos do tempo,
embriagai-vos; embriagai-vos, sem cessar!
De vinho, de poesia, ou de virtude,
como achardes melhor.
Charles Baudelaire