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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Escrever o trágico

Faço primeiro uma distinção importante:

1- Trágico: oriundo de uma tragédia física, catástrofe natural, fenómeno que abate-se sobre várias pessoas e que transforma a vida destas em um algo depressivo ou a uma actitude de negação da vida pelas incertezas e afrontas que nos traz.

2- Forma de ver o mundo. Abrange a primeira e a toma de assalto. Porém vai-lhe além. Seria como dar um salto ao pensamento de que tudo em vida flui e que  sensação de impermanéncia é superior e notória. Vejo isto em leituras como as de Lord Byron, como as de Fernando Pessoa (com Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, em especial), em algumas peças de Shakespeare, em filósofos como Heráclito e Nietzsche e alguns pensamentos existenciais de Pascal. 

Feita distinção o que é escrever o trágico?

Enquanto condição, escrever-se o trágico é, em suma, escrever sobre a vida. É uma escrita densa, profunda, porém vital, complexamente afirmativa e consequentemente forte. Por instáncia, alguém que promova a escritura de um texto cuja intenção seja despertar aos outros a ideia da passagem que a vida é. Da condição existencial imperene, do obstáculo diário e do sofrimento de Prometeu e Sísifo. É denunciar que muitos afastam-se desta vida, por vários motivos, e esquecem-se que viver é eternizar o agora por mais agonizante e macabro que este seja. O trágico sobe as montanhas e avista o abismo de suas pontas. O sábio consome as corredeiras turbulentas de rios e embriaga-se até o último instante que ainda há vida a correr pelas veias. O trágico é precipitação, o trágico é correr ao tempo e fazer-lhe companhia, até sentir nele o seu sentido devorador. O trágico é filho do tempo e como este será devorado, mas não importa-se com esta inevitabilidade, bem mais, vive rapidamente aquilo que mais pode e de maneira mais desmedida. 

Rimbaud foi um trágico em vida e em poesia. Ao inferno que diz ter passado uma temporada denoto que foi, em verdade, um alento, uma ascensão, uma purificação que lhe deu pouca vida cronológica, mas muita vida poética. Este trágico ele o escreveu com o sangue novo e vívido de suas veias e artérias. preveniu-se de guardar qualquer sentimento e jogou a fúria do presente ao papel. Foi isto que o imortalizou. O esplim de Baudelaire nada mais foi do que a sua sensação diante da inconsciéncia de tantos. Parados em algum lugar e nulos ao tempo, as pessoas incomodavam-no. Eram sentinelas do nada e niilismo é sintoma de uma doença incurável que explode em rejeição ao trágico. Ruído primevo. Zaratustra falou ao deserto quando anunciou a tragédia porvir e uma nova espécie de homem com outra moral e outra consisténcia. Este Nietzsche morreu crucificado pela sua ousadia. Fez-se de seus anos de loucura uma completa loucura. Um erro que tornou o seu trágico, um alucinado e esquizofrénico, um macete para escamotear a sua genialidade condensada pela insanidade. Mas desde sempre Nietzsche escreveu o trágico. Foi o trágico. A isto não deve-se falar nada além do que diz ele mesmo: "Escrevi para mim mesmo" - Mihi Ipsi Scripsi - e "Sou um escritor póstumo". 

Na arte de alguns grandes génios o trágico foi o que fora as suas vidas. Um ímpeto, um impulso ao desmedido e desfavorável aparente, mas ao que mais lhes era propício.
Modigliani, Escher em suas perspetivas, Munch e sua fatalidade à vista são-nos exemplos claros de artistas lidos com os óculos da loucura e da insanidade. 
O que me afronta em negar-se o trágico? É negar aquilo que mais parece-se com a vida, com a vida elevada ao sentido ontológico, ao sentido de ser. A vida é uma tragédia sucedida ou complementada por pequenas tragédias, a comédia e rir-se deste ponto da tragédia. A sucessão de pontos pequenos que fazem com que nasçamos e praticamente já saibamos que não viveremos muito, Isto por ser amedrontador é, por si só, um delírio claro de degeneração, de visão da decomposição futuro, do bíblico "ao pó retornarás", uma das passagens felizes desta compilação de livros. 

Diante disto digo-vos, por encerramento: escrever o trágico é senti-lo. Sentir o trágico é mover-se dentro dele. E fazer isto é ser humano em demasiado. 



Eustáquio Silva (09/02/2016).

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