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quarta-feira, 16 de março de 2016

Sóror Mariana Alcoforado - Carta I

Considera, meu amor, como fostes excessivamente descuidado! Ai, mal aventurado! - Traíram-te esperanças fementidas. e com elas me enganastes. 
Uma paixão em que bordava tantos deleitosos projetos só pode dar-te, agora, um mortal desespero, apenas comparável à crueldade desta ausência. 

E há de este desterro para o qual todo requinte da minha dor não acha nome assaz funesto, privar-te para sempre de embeber-me nesses olhos em que via tanto amor e que me fizeram conhecer enlevos que me enchiam de contentamento, que eram tudo para mim, que enfim me abastavam a vida?

Os meus olhos é que perderam nos teus a única luz que os animava. Só lhe restam lágrimas, nem eu lhes tenho dado outro emprego senão o de chorar continuamente desde que soube que estavas resolvido a um apartamento de mim tão insuportável que cedo me fará morrer. 

E contudo parece-me que tenho o que quer que seja de enamorado apego às mágoas de que tu só és as causas. 
Consagrei-te a vida desde que em ti descansaram os meus olhos, e sinto em sacrificar-te um místico prazer. 

Mil vezes ao dia te procuram meus cansados suspiros e não me trazem, os tristes, outro alívio a tantas tribulações do que aviso cruamente sincero de minha desventura que não se consente uma esperança e me repete em todos os instantes: - "deixa, deixa de consumir-te em vão, infeliz Mariana deixa de anelar um amado que não tornarás a ver, que passou o mar para e fugir, que está em França no meio dos prazeres, que não pensa um momento nas tuas penas, que te dispensa de todos estes transportes que nem sabe agradecer-tos". 

Não sou eu já bem desgraçada sem me torturar com falsas suspeitas?

Por que hei de esforçar-me em apagar da memória todos os desvelos com que te esmeravas em me provar amor?

Ai tanto me deleitavam eles que bem ingrata fora se não te amasse ainda com os mesmos arroubamentos em que minha paixão me enlevava quando lograva os testemunhos da tua. 

Como é possível que lembranças de tão doces momentos se tenham tornado tão amargas? E que contra a natureza, sirvam somente para dilacerar-me o coração? 
Pobre dele! A tua última carta pô-lo num estado singular: tais saltos me dava no peito que parecia forcejar por arrancar-se de mim e voar para ti. 

Tão quebrantada fiquei, de todas estas emoções violentas que por mais três horas estive toda alienada de sentidos. 
Era como se defendesse de voltar à vida que devo perder de ti, já que para ti a não posso conservar. 
Com bem pesar tornei a mim.
Resgalava-me  sentir que morria de amor, e sentia-me bem finalmente, por ver cessar de flagelar-me a alma, a dor, a tua ausência. 

(...) 

Continua amanhã 


Sóror Mariana Alcoforado. 

1 comentário:

  1. Uma menção de penar pelo orgulho masculino de Rousseau a não reconhecer em uma grande e talentosa escritora, freira de Beja, uma das maiores letristas de cartistas de um século abarrotado de inspiração. Foram si as suas cartas portuguesas que fizeram-na gigante. Extremamente importante à literatura a despeito do preconceito de um escritor contestável como Rousseau.

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